Na minha opinião isso ocorre porque a maioria anda, usa transporte coletivo, porém cria um juízo de valor sobre o que é mais importante. Ou seja, considera que os veículos motorizados são mais importantes, mais relevantes do que outras mobilidades. E quanto mais particular, mais caro, seria melhor. Ou seja, em escala decrescente vem o carro particular, os taxis e ubers da vida, a motocicleta, o metrô, o ônibus, o caminhão e os furgões. Daí viriam bicicletas, patins, skates, os esportistas de corridas e o pedestrianismo... É claro que o automóvel é útil, assim como um liquidificador, mas menos que um computador ou um celular atualmente. O essencial para muitos é TER e não SER. É ditado pelo fetichismo da mercadoria.
Na juventude, muito menos, há uma grande parcela que não entra nessa visão e sequer se interessa por ter habilitação para dirigir automóveis. A cultura está mudando, porém há um choque de concepções. E o Americanismo e Fordismo de Gramsci ainda predomina na cabeça das pessoas, até por causa da subsunção formal, às vezes total da galera, muito bem descrita por Jacob Gorender. A pessoa pensa com a cabeça e os desejos do patrão.
E o que isso tem a ver com Fordismo e o Partido dos Trabalhadores (PT)?
Há muitos anos acompanho as mudanças que foram trazidas pelo paradigma que declina na Humanidade e a emergência de novas formas de organização social e produtiva no século XXI.
Durante meu período de pós-graduação me preocupei com centralidade sobre a compreensão da Ciência & Tecnologia (C&T) pelo movimento sindical brasileiro (veja aqui: http://repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/286726 ). Pesquisei como a classe trabalhadora ligada à Central Única dos Trabalhadores (CUT), sobretudo metalúrgica, pensava e agia na temática nos anos 1990, de desemprego, crise, neoliberalismo em meio à reestruturação produtiva mundial. A compreensão dominante era de que a C&T era neutra e passava a esboçar alguma criticidade num contexto de recessão e resistência.
Fordismo se origina daquilo que Henry Ford, fundador da indústria automobilística Ford, que inovou na produção com a linha de montagem e trouxe uma nova compreensão a partir do modelo T: produção em larga escala de produtos estardardizados (iguaizinhos, todos pretos, adoro! rs) e que com a queda tendencial das taxas de lucro tornava o carro um produto que todos poderiam ter, até os operários que os confeccionavam. O truque do consumismo é tão criativo quanto outras invenções dele. Até Hitler o adorava e o condecorou. Ver mais em http://willianhiga.blogspot.com/2018/02/henry-ford-e-um-cara-e-possivel-mata-lo.html.
A grande indústria de Marx se concretizava, com dezenas de milhares de operários concentrados em uma planta industrial. Com Roosevelt ou Getúlio Vargas como presidentes e Keynes como economista-intelectual isso se constituiu como o padrão econômico no pós-2ª guerra e esteve relacionado ao Estado de Bem Estar Social no mundo. A produção em larga escala articulada ao “Welfare State”, tanto nos EUA, Japão, Europa teve sua versão capitalista de Estado na URSS e depois na novíssima comunista China. Mas isso é outro artigo, do Michael Burawoy e de outros... rs
De início, o Fordismo foi implantado no Brasil parcialmente. Muito disso foi feito por Getúlio Vargas (GV), entre 1930 e 45, porém parcialmente, com a legislação trabalhista e previdenciária, direito ao voto das mulheres e outras conquistas da sociedade civil oferecidas como cidadania concedida. Além disso, CSN, Petrobras e indústrias de base. Considerada pela intelectualidade da época, o proletariado permanecia sem grandes mobilizações desde 1917, afora alguns movimentos esporádicos e sem tanta relevância no cenário nacional. GV foi chamado de “pai dos pobres” porque ampliou o mercado consumidor e o estendeu a uma classe trabalhadora emergente, por exemplo, os metalúrgicos. Que depois do Fordismo se repaginou para alguns sociólogos do trabalho de “aristocracia operária”.
Contudo, a partir de 1978 isso mudou. As greves se tornaram a base para questionar a Ditadura Militar e dali surgiu um líder que mudou o país: Lula. Ele foi o grande líder das greves e consolidou ao redor de si outras categorias: bancários, professores, funcionários públicos, petroleiros, químicos, eletricitários, entre outros. E isso confluiu para a formação do PT, MST e da CUT, entre outras organizações da sociedade civil, junto com movimentos progressistas cristãos (católicos sobretudo) e por muitos agrupamentos de esquerda oriundos sobretudo do movimento estudantil e da intelectualidade em geral (Ver Eder Sader). A aristocracia operária acordou e se levantou do berço esplêndido.
O PT foi uma inovação na organização das esquerdas que combatiam a ditadura militar e que assistiram a um fenômeno raro na América Latina: um processo de greves conduzida pelos metalúrgicos do ABC Paulista, a Detroit brasileira. Os anos 80 foram tocados em meio de muita inflação, luta social, Diretas Já, Constituinte e um processo de crise e transformação do setor produtivo em nível mundial, uma crise profunda do desenvolvimentismo que era predominante desde GV. O Lula quase chegou lá e começou a sua trajetória para Brasília.
Enquanto isso, o Fordismo entrava em crise no mundo. Os EUA foram impactados pelo Toyotismo, o pós-fordismo japonês das montadoras de automóveis orientais e o capitalismo sentiu a partir de seu Vale do Silício a entrada pesada das tecnologias da informação. Tudo que era sólido se desmanchou no ar, basta ver Detroit...
Nos anos 90, o Brasil é atingido por essas mudanças. País com reserva de mercado, adepto da engenharia reversa preguiçosa e de desenvolvimento tardio no Capitalismo industrial, percebeu forte onda de privatizações, terceirizações e desindustrialização, que chega aos anos 2010 com menos de 10% do PIB ligado à atividade manufatureira. A greve dos petroleiros no início do governo tucano (1995) pavimentou uma forte defensiva dos movimentos sociais, com uma reestruturação produtiva imposta e que não foi muito bem digerida pela classe trabalhadora, dado o processo de desemprego, precarização das relações de trabalho, aumento da fome e da miséria.
Nos anos 2000, a Teoria da Dependência de FHC se auto aplica e é superada. As elites sobretudo brancas perdem o controle na América Latina. O apagão de energia elétrica, o afundamento da plataforma da Petrobras, as taxas de juros estratosféricas e a explosão da dívida pública no governo neoliberal tucano, além do acúmulo de forças da classe trabalhadora fizeram com que Lula, o PT e a classe trabalhadora chegassem ao governo federal em 2003.
Os governos Lula e Dilma implementaram uma série de ações visando um Estado de Bem Estar Social: geração de mais de 20 milhões de empregos formais; implementação do Bolsa Família, atingindo mais de 10 milhões de famílias; expansão de mais de 300 institutos técnicos federais e dezenas de universidades; redução de mais de 30 milhões de pessoas na faixa da miséria; levar água, saúde (‘Mais Médicos”, do meu amigo Padilha), energia elétrica e alimentação para dezenas de milhões de brasileiros nos confins do Brasil. Poderia citar mais indicadores e números, mas esses bastam para explicitar o neofordismo petista no Brasil.
Lula já havia afirmado nos anos 90 que não era comunista, era fordista (ver aqui: “Lula declara não ser comunista e se diz seguidor de líder capitalista” https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/6/30/brasil/17.html). Nesse sentido, as principais ações visavam uma igualdade social básica, geração de empregos formais e o fortalecimento do desenvolvimentismo, com inserção do Brasil entre os países desenvolvidos. E, claro, um neofordismo, com forte aceleração na produção de automóveis e bens de consumo para um mercado consumidor crescente. E o consumismo imbricado veio de carona.
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Foto: Jornal do Carro, Estadão
De fato, Lula empreendeu aquilo que foi iniciado por Getúlio Vargas e não foi concluído. O primeiro governante fez a revolução industrial no Brasil, com siderurgia, Petrobras, previdência social, direitos cívicos, trabalhistas e industrialização após a 2ª Guerra Mundial. O metalúrgico trouxe 3 refeições por dia para a maioria, habitações, luz, água, educação, saúde, aumento da massa salarial e, claro, um carro na garagem, além de viagens de avião para dezenas de milhões de pessoas. Como homem de palavra, ele cumpriu toda a resolução dos Congressos de Metalúrgicos de São Bernardo Campo dos anos 1970 em seu governo. Além de cristão, o pernambucano aprendeu muito no SENAI e na vida. Paulo Freire concordava.
O que isso significa, afinal? Bom, o Brasil assistiu a algo que provavelmente cerca de 20% dos brasileiros não queriam ter visto: uma igualdade social básica. Ou seja, ter um pobre ao seu lado no avião; pobres, negros, mulheres, LGBTs no supermercado, no bar, no trânsito, no aeroporto, enfim, em todo o lugar, consumindo as mesmas coisas e sem a possibilidade de se “diferenciar”. A reação ao fordismo tardio veio junto com o pós-fordismo, os neoliberais. Assim, anti-fordistas, os neofascistas se aliaram com os neoliberais para um projeto reacionário, de destruição autofágica e nada criativa, uma volta ao pré-capitalismo industrial.
Na minha opinião, os paradigmas de Thomas Kuhn se superpõem. Um não aniquila outro. Basta ver que Newton é muito usado, apesar de Einstein ter transformado radicalmente a Física, sobretudo para aquilo que está próximo à velocidade da luz, a 99% de c... rs O mesmo ocorre na vida. A mistura de paradigmas se tornou cronicamente inviável, um verdadeiro Bacurau.
A classe trabalhadora lutou por décadas e assumiu claro, uma subsunção formal (Gorender), uma subordinação aos detentores dos meios de produção ou pior, do “investimento estrangeiro direto”, o dinheiro que está na nuvem. Nós evitamos que o ABC Paulista virasse Detroit, mas as cidades-indústrias, ou como chama outro barbudo, a grande indústria virou pó. De 100 mil pessoas na grande indústria de Marx hoje tem 2.000 alimentando máquinas CNC, computadores e robôs nas montadoras, o resto fica no estoque zero, no global sourcing, na logística do just in time. Categorias profissionais, como bancários, industriais, entre outros, também foram atingidos. Outros, como professores, advogados, médicos e engenheiros estão na mira da substituição por máquinas e softwares. A logística se articula à informática, à automação, às redes sociais e gera alguns milhares de bilionários (cerca de 2000) que têm mais $ do que bilhões de pessoas no mundo (ver Oxfam).
Assim, aquilo que já era percebido nos anos 1990, fez com que a CUT e boa parte da classe trabalhadora não notassem que o mundo mudou. O diálogo feito entre Marx e Bakunin está dado: “toda relação técnica de produção reproduz novas relações sociais de produção”.
Ou seja, o proletariado não tem mais a mesma relevância do século XIX e agora emergem outros explorados no jogo: Ruy Braga, Ricardo Antunes, Marcio Pochmann, entre outros chamam eles de precariado, uberizados, entre tantas outras denominações. Enquanto o mercado formal de trabalho está estagnado, o informal explode. O desemprego é contido pelo desalento, alienação e subsunção formal inversa. Já passou a hora de reorganização das organizações para abarcar os novos agentes.
Pessoas que não têm carteira assinada, ganham pouco, jornada de trabalho infinita, de acordo com o ritmo ditado pelas máquinas: telefone celular, redes sociais, computadores e aplicativos. O office boy retratado na música da banda Magazine, do poderosíssimo Kid Vinil (RIP!!!), virou motoboy nos anos 2000 e agora é também bikeboy nos anos 2010. A linha de produção do just in time circula pelos pedais. O Capital vira sujeito oculto e o detentor dos meios de produção é indefinido, está nas nuvens. O Admirável Novo Mundo está ultrapassado?
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Foto: Diálogos do Sul – UOL.
A emergência de novas atividades laborais acontece através de uma liderança apoiada por Lula. Fernando Haddad, ex-ministro da educação e ex-prefeito de São Paulo, implementou junto com Jilmar Tatto, então secretário de transportes e mobilidade urbana, uma inovação na capital paulista: 400 km de ciclofaixas e ciclovias, o que fez das bicicletas um instrumento para deslocamento para o trabalho, para o lazer e gerou trabalho para dezenas de milhares de jovens, o que está se expandindo para todo lugar. Falta somente os petistas, cutistas e esquerdistas começarem a adotar isso como algo a ser defendido.
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Foto: site GGN (divulgação)
Enfim, a classe trabalhadora terá de pensar e agir fora do quadrado. A crise da pandemia proporciona um momento de reflexão para notar que a ofensiva feita pelos bilionários representados por Trump é autofágica em si. Máquinas não comem comida, não dormem, não transam (ainda...), não são consumidores autônomos e não movimentam a indústria cultural. Como o velho barbudo descreve a partir da teoria de Ricardo, $ não vira $$´no mundo real. Pode virar nos cassinos mundiais, nas Bolsas de Valores, mas isso é virtual e algum dia se encontrará com a realidade. A bolha explode.
Lula e Dilma semearam muitas sementes pós-fordistas e que não são neoliberais. Sem uma visão ambiental abrangente, algo como a agroecologia do MST, solidariedade explicitadas pelo Papa Francisco, economia solidária de Paul Singer, tecnologias sociais de Renato Dagnino, mobilidade urbana e rural ativa e um pós-fordismo associado aos governos petistas, sobretudo na educação e saúde pública, com água e energia socializada e estatal, não haverá sequer um modo de produção automatizado, digno de filmes de ficção científica, como “Exterminador do Futuro, Galactica ou mesmo Blade Runner”. Estaremos mais para Walking Dead sem Negan para proteger os bilionários...rs
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjyBE5lMdpaE0fcBS3Naxe64fUmKhfYS2KvfSie8TfKazYAOQWEEqA2qjBZzEfSYd0zv5BVInu7fQTXBxct3YLGeMfswr6qViwM8MTpkjzrSs6ECWlrQ4j0LRU1fViujbPcOHGv-zdVPxk/s1600/Negan.jpg)
Foto: Observatório do Cinema, Bruno Tomé.
A informalidade, o precariado, os entregadores terão de ser integrados pela classe trabalhadora. E, claro, no apocalipse, bicicletas podem ser eficazes para fugir de zumbis do que carros... rs!
Não dá para esquecer que as bikes são neofordistas... rs!
É o que acho.