Willian Higa
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O aprendizado não ocorre linearmente, assim como toda reta é uma curva. Aprendemos a partir dos consensos, mas é nos dissensos que nos chocamos com ideias diferentes e com aquilo que discordamos de forma veemente e aparentemente definitiva, quase uma ruptura de paradigma. Depois de algum tempo, polêmicas e debates, as verdades definitivas, unilaterais passam a ser questionadas e chegamos a conclusões distintas daquelas que tínhamos. A revisão leva algum tempo para acontecer porque a dialética pode ter longos ciclos e tudo o que era verdade e consenso pode mudar. É uma dissonância cognitiva (Harmon Jones, 2019).[1]
Isso ocorre por mudanças cognitivas, emocionais ou reflexões que levem a novas perspectivas. Uma das regras da História é a imparcialidade, o distanciamento do objeto e, de certa forma, não analisar algo precipitadamente, no calor dos acontecimentos. Às vezes, o distanciamento histórico de acontecimentos permite interpretações múltiplas, mais racionais, complexas e relativizadas. E às vezes o “vilão” não é um personagem linear, ele pode ser controverso e ter erros e acertos em sua trajetória. O bode na sala pode ser útil para entender algo depois que ele não se encontra mais no recinto. Personagens como Darth Vader ou Coringa são exemplos.
Um desses casos envolve um personagem do século XX que mudou a História: Josef Stalin. O líder da URSS, sucessor de Lenin nos anos 1920, esteve no comando de um país até os anos 1950. Figura controversa, contraditória, amada e odiada, é desprezada por muitos e adorada por outros. Eu não sou daquela época, mas o achava ultrapassado, autoritário e tirânico. Acreditava que o Socialismo Real tinha sido um erro que condenou o futuro devido aos erros cometidos. Mas comecei a rever fatos e resultados após décadas de sua passagem pela Terra. Essa é a análise que faço nesse texto, décadas depois do fim da URSS e alguns anos depois de militância.
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O interesse nessa dissonância cognitiva aconteceu num papo entre velhos amigos de caminhada no movimento estudantil. Durante anos usávamos a figura de Stalin como algo negativo, um personagem cruel, vingativo, persecutório, do "mal". Nosso principal concorrente eram os camaradas da escola marxista leninista e isso acentuava as críticas e percepções negativas desse líder de esquerda, dado que os defeitos eram notados de forma acentuada. Ser anti-stalinista era algo óbvio, natural e consensual naqueles grupos. Nada compensava os erros do Leste Europeu e o que aquilo prejudicou nas lutas por igualdade básica e utopias.
Essa discussão abriu uma polêmica grande e apaixonada. Algumas pessoas achavam o cúmulo essa autocrítica (ou avaliação crítica...) e se colocavam com posturas tradicionais de repulsa ao ditador do socialismo burocrático e autoritário. Um outro amigo meu, engenheiro, pragmático, veio mudando de posturas ao caminhar pela vida e se aproximou de alguns ex-stalinistas. Talvez ele tenha mudado suas concepções por isso. Mas o fato é que a polêmica mantinha posições extremadas e outras distanciadas do calor do debate. As opiniões mudam conforme o tempo passa. A questão ficou sempre em aberto e pensei em escrever algo sobre isso.
Analiso no decorrer do texto as influências dessa liderança em vários fatos e acontecimentos que houve a presença de Stalin: Revolução Russa, 2º Guerra Mundial, Revolução Chinesa, entre outras. A URSS no contexto atual é analisada atualmente e nos desdobramentos de acontecimentos e fatos que impactam na atual correlação de forças políticas, sociais, militares e tecnocientíficas. Evidentemente isso percorre os avanços e os erros desse líder soviético. Uma análise que procura se distanciar na dissonância cognitiva e trabalhar a complexidade analítica a partir de atos, fatos e consequências que se apresentam na História.
Alguns de nós nesta época começamos a apresentar divergências sobre isso. No meu caso, continuo no campo teórico sendo crítico e até antagônico teórico ao stalinismo, que na minha opinião foi superado pelo contexto e por novos desafios, sobretudo com as mudanças neste modo de produção. Contudo, procuro fazer uma análise crítica desse personagem para além do vilão reconhecido. Chego à conclusão de que houve avanços por causa dos bolcheviques. Lenin, Stalin e Trotsky estavam corretos e realizar a Revolução Russa foi positivo para a Humanidade. E a construção da URSS teve Stalin com o papel central durante o século XX e consequências posteriores. É o que discutimos a seguir.
Uma revisita à Revolução Russa
Ao analisar “à quente” a História da URSS, no final do século XX, as visões sobre o colapso da bipolaridade foi impactante. A unipolaridade global com o Fim da Guerra Fria (1945-1991) gerou uma interpretação de vitória final do Capitalismo e da superpotência econômica e militar global, os EUA. A queda do Muro de Berlim e a desagregação da URSS, com o fim da Cortina de Ferro gerou uma sensação de destruição abrupta e criativa, com uma unipolaridade aparentemente inexorável e determinada por um “Fim da História”, conceito difundido por Francis Fukuyama no final dos anos 80. O imperialismo eurocêntrico estaria perpetuado.
Quem viveu aqueles acontecimentos ficou atônito. Como uma superpotência como a URSS se desmanchou no ar? A queda do Muro de Berlim iniciou o processo, assim como as manifestações na praça da Paz Celestial (Tiananmen) na China parecia precipitar o “fim do mundo” progressista. As explicações naquele contexto eram de um capitalismo ufanista e um balanço ácido à experiência soviética, chinesa, cubana, vietnamita, entre outras. As mudanças foram drásticas e a revisão histórica foram duras, abruptas e como se observa, apressadas. O fim da História não se concretizou e o futuro contempla múltiplas possibilidades e possíveis desfechos.
No caso para setores da esquerda isso foi causa do stalinismo e o marxismo leninismo. Uma análise através da dialética hegeliana, na qual falhas teóricas na leitura de Marx levou a erros cruciais. Os seguidores de Stalin ditaram regras, interpretações teóricas e políticas estritas e pode-se dizer, com autoritarismo. O establishment soviético gerou expurgos e embates viscerais e considerações que levavam a erros. O fim da URSS exasperou as conclusões, envolvidas por percepções precipitadas de derrota definitiva. Apesar das responsabilidades stalinistas, pode se observar que o uso de ferramentas analíticas marxistas pelos críticos foi secundarizado.
O ocaso da URSS pareceu ser um desastre erigido pelo stalinismo, que de fato colaborou com isso, mas não se observou algo que fosse positivo daquilo. Ouvi um professor da UNICAMP, muito respeitado e militante histórico de esquerda afirmando que nada do que foi feito na URSS se aproveitava, que havia mais fardos do que qualquer coisa e poucos avanços. E nem era possível no fim do século XX, após o fim do bloco socialista real, fazer um balanço diferente disso. Somente agora percebemos algumas das consequências positivas das ações da URSS no século XXI. O desenvolvimento das forças produtivas na Rússia está evidente nos dias de hoje.
A estruturação do vilão perfeito Stalin é caracterizada por um personagem histórico, comandante do país inimigo do Ocidente, paranoico, psicopata, antipático, vingativo, vindo de uma república remota, a Georgia. Ele era um genocida, com mais de 20 milhões de mortos creditados a ele, além do uso dos campos de concentração na Sibéria. Um burocrata medíocre que nada fez pela URSS, que fez pacto desastrado com Hitler e que foi traído pelo nazista. Suas vitórias foram creditadas até o inverno soviético intenso, que seria mais relevante do que o Exército Vermelho e seu líder. Foi tudo uma questão de sorte e não uma vitória militar às forças nazistas e aliados.
Um líder sanguinário que perseguia oponentes e se mantinha no poder pelo autoritarismo e malversação do marxismo. Aqueles que não eram marxistas leninistas ou stalinistas se opunham aos seguidores do ditador e eram perseguidos. Há de fato embates duros, marcantes e forte tensão e divergência relatadas naquela época e o retrato e imagem de Stalin é associado aos prováveis erros, defeitos e limitações dele. A dissonância cognitiva escamoteia os avanços da URSS e impede uma análise mais precisa e acurada do desenvolvimento de países como Rússia, Cuba, Vietnã ou China.
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Conversando com alguns amigos, lembro que sempre fui muito mais simpático aos trotskistas, sociais-democratas e setores mais ligados ao eurocomunismo, dado que sou gramsciano. Havia um consentimento à visão capitalista sobre Stalin, o que reforçava um consenso eurocêntrico ocidental, anti-stalinista. E isso carrega aspectos cognitivos, culturais e emocionais, dado que os grupos políticos assumiram posições distintas ou até opostas ao marxismo leninismo ou ao stalinismo no século XX. De qualquer maneira, as avaliações são perturbadas pela dissonância cognitiva. Assim, mesmo com quem discordamos temos de avaliar erros e acertos.
Mas acredito que algo tem de ser feito como um balanço crítico da experiência soviética (1917-1991) e suas consequências. Afinal Stalin participou ou liderou a União Soviética, além do PCUS após a morte do líder Lenin (meados dos anos 1920) até seu desligamento material em 1953.
Decidi levantar as questões positivas atos de Stalin na Revolução Russa e suas consequências para o mundo. Além disso, outras ações que envolvem o georgiano:
- 1. Revolução Russa: Aproveitamento de oportunidade da derrota do império russo na 1ª Guerra Mundial. Vitória dos bolcheviques em 1917 e resistência aos russos brancos. Lenin, Trotsky, Stalin;
- 2. Consolidação da URSS: Capitalismo de Estado. Industrialização, introdução do Fordismo Taylorismo nas repúblicas. Fim do Feudalismo, do Czarismo e Urbanização. Socialismo priorizado na URSS;
- 3. A 2ª Guerra Mundial. Posição defensiva inicial da URSS frente ao nazifascismo. Pacto de Não Agressão. “Traição” Nazista, com rompimento de pacto de não agressão e resistência soviética;
- 4. Vitória do Exército Vermelho na batalha de Stalingrado e derrota do Nazismo. Chegada a Berlim e estabelecimento da Cortina de Ferro;
- 5. Guerra Fria. Corrida armamentista, nuclear e aeroespacial.
- 6. Welfare State: avanço da sociedade civil organizada no Ocidente, melhoria das condições de vida e de direitos humanos e dos trabalhadores, visando conter possíveis avanços da URSS na Guerra Fria.
- 7. Apoio à vitória da Revolução Chinesa. Vitória de Mao Tse Tung (1949).
- 8. Criação da Coreia do Norte.
A seguir, comentamos questões que considero algumas das ações e fatos históricos na era Stalin
Revolução Russa
A Revolução Russa teve um papel essencial no desenvolvimento político, estratégico, econômico e cultural naquilo que se pensava e elaborava sobre capitalismo e socialismo. Esse evento se torna um fato político e histórico e que expressa uma narrativa de grande parte do século XX. Além da concorrência e disputas no campo capitalista, um dos fatos políticos mais marcantes foi a conquista e a existência de uma república inspirada nas ideias de Marx. A teoria se tornou uma prática, com instrumentos e erros que foram disseminados, tornando a experiência uma demonstração de desastres e abandono de suas iniciativas como um todo.
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Muito já foi escrito sobre isso. O imaginário coletivo do século XX foi permeado e modelado através de um desdobramento de uma revolução burguesa em que a classe trabalhadora foi uma das protagonistas: a revolução francesa, 1789, a primeira em que a classe trabalhadora teve um papel destacado e registrou o imaginário de mudança no modo de produção. O fim do czarismo e dos resquícios do feudalismo na URSS tiveram ações similares àquelas ocorridas na França e simbolicamente tiveram desfechos análogos na Rússia e em outras ocasiões semelhantes.
Mesmo não sendo talvez a revolução burguesa mais bem sucedida (a inglesa foi muito menos alardeada, mas transformou a Grã Bretanha em superpotência mundial), a tomada de assalto do Estado virou “receita de bolo” por parte das esquerdas para o sucesso. Uma tomada do poder com a eliminação de uma classe (a aristocracia e a família real) passa a estar nas perspectivas de revolucionários naquele contexto. E geralmente isso ocorre em países subdesenvolvidos ou com inconsistências na economia e na sociedade, gerando observações de discrepâncias com parte dos estudos marxistas sobre o desenvolvimento dos modos de produção.
Revolucionários como Vladimir Ilich Ulianov, Lenin, elaboravam a partir dos trabalhos de Marx, sobretudo “O Capital”. Bryan (1992) descreve os estudos e as críticas feitas de Lenin a Frederick Winslow Taylor e à administração científica nas grandes empresas e indústrias no início do século XX. Mesmo sendo estudioso e crítico no tema, Lenin adotou o taylorismo e posteriormente, Stalin consolidou e adotou o fordismo na URSS. A revolução russa instalou o capitalismo e consolidou o modo de produção. A industrialização da URSS se deu com a tecnologia convencional (TC) mais avançada da época até o fim da URSS.
Assim, pode-se considerar que Stalin acabou com os vestígios do feudalismo russo com a coletivização da agricultura, erradicação da nobreza e o processo de industrialização estatal. Pode-se dizer que houve desenvolvimento das forças produtivas e ela chegou no nível mais desenvolvido da época: o capitalismo industrial, com direitos e deveres, urbanização, mecanização e a instalação de outro modo de produção. A produção científica e tecnológica aconteceu na criação ou apoio de universidades públicas e proporcionou a formação de mão de obra qualificada e inovações orientadas pela URSS.
As medidas tomadas por Lenin e Stalin instalaram o Capitalismo de Estado na URSS. Houve industrialização, adoção do fordismo taylorismo, provável engenharia reversa das inovações europeias e norte americanas. A produção científica e tecnológica foi ditada por demandas nas indústrias de base, militares e demandas do Estado. Os bens de consumo levavam em conta o valor de uso e não às demandas dos consumidores. As inovações na infraestrutura, indústria bélica, mobilidade urbana, entre outras, foram no mínimo semi-dinâmicas, objetivando o valor de uso e sem a concorrência entre bens de consumo e serviços.
Mesmo sem a aparente extração de mais valia nas indústrias, a organização da produção separava o trabalho intelectual do manual, a concepção da execução, fez a produção de produtos estandardizados em larga escala e as linhas de produção fordistas. A adoção da TC hegemônica, retratada por Gramsci (2001) em Americanismo e Fordismo gera contradições assemelhadas ao Capitalismo de Mercado. Porém, a economia planificada age de forma distinta daquela orientada pelo mercado e em questões como infraestrutura, energia, recursos naturais há planos de metas e planejamento de médio e longo prazo através do Estado.
O desenvolvimento das forças produtivas foi intenso, influenciado pelas contradições inerentes à tentativa de Taylor de fazer do trabalhador um primata amestrado em atividades produtivas. Algo que ocorre através da adoção de máquinas, equipamentos e instalações capitalistas na URSS. Porém claro, sempre melhor do que o Czarismo e os resquícios do Feudalismo na Rússia e nas outras repúblicas. O despotismo fabril, observado na organização da produção capitalista, é orientado pelo Estado, o que muda as consequências e os resultados. Sem ter a orientação do mercado, a planificação gera resultados distintos.
Logo, o espelho criado, mesmo com defeitos, limitações, distorções e deformações feitas pela ótica stalinista, gerou uma imagem fantasmagórica para países centrais do Capitalismo e supostamente maravilhosa para outros, pelas opções de rupturas. Erros e acertos foram tomados nessa experiência que não acompanhou na plenitude o que Marx e Engels escreveram sobre o desenvolvimento das forças produtivas. Foi feito por militantes em meio à oportunidade histórica de tomar de assalto o poder de um país derrotado na 1ª Guerra Mundial e deu no que deu. Ou não?
Consolidação da URSS: Capitalismo de Estado. Fordismo Taylorismo. Fim do Feudalismo, Industrialização. Urbanização
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O crescimento econômico sem a existência da burguesia e com a burocracia estatal, partidária, executou uma revolução industrial tardia sob o controle heterodoxo do Estado e do PCUS. Algo que é inédito em nível mundial, sobretudo nessa escala. Esse padrão de desenvolvimento soviético foi reproduzido em outros países a partir de experiências ocorridas no Sul Global. A chegada de um capitalismo industrial tardio recebeu a influência da experiência soviética e gerou a estagnação de inovações na produção de muitos bens e serviços, algo não avaliado por Marx e Engels, que não viveram essa circunstância ou sua possibilidade.
Por outro lado, o Capitalismo de Estado criou uma situação complexa na gestão dos recursos, do planejamento e dos resultados. As demandas surgiram dos problemas, das crises e das demandas sociais e estatais. As inovações não surgiram pela queda tendencial das taxas de lucro, nem pela concorrência, mas por problemas observados pelo Estado (fome, miséria, desabastecimento, problemas de segurança, defesa, etc). O desenvolvimento da URSS é um exemplo disso, assim como da China e de outros países, o que foi incorporado na matriz de decisões. A orientação vetorial de inovação se deu pelo valor de uso, contextos e não pelo mercado.
A provável falta de concorrência e de defesa mais ativa do consumidor fez com que no paradigma fordista-taylorista associado ao capitalismo de Estado houvesse algo diferente do que acontecia nas características de produção nos países capitalistas desenvolvidos. Burawoy (1979) descreve um conceito na observação das relações técnicas de produção entre trabalhadores e a gerência científica: o fazer parecer (making out). A gerência finge que manda e sabe de tudo que ocorre. O trabalhador finge que obedece, mantem segredos, macetes e trabalha de acordo com seus saberes. É o consentimento na produção, algo que ocorre de forma semelhante.
É provável que o Capitalismo de Estado gere outros resultados na associação com o fordismo-taylorismo ou com o Toyotismo. Ao se associar à burocracia estatal na URSS, a situação sugere que o modelo semi-estático das inovações na produção de bens de consumo foi mais intenso do que nas indústrias de base, produtoras de energia, militares ou de infraestrutura urbana. A estagnação criativa pode se exemplificar na produção estandardizada em larga escala de bens e serviços soviética. A extração de mais valia se insere em possíveis desperdícios, investimentos na produção e oferta restrita dos bens produzidos. Mas não é ela que orienta as inovações.
A curva de aprendizado feita pela Revolução Russa priorizou a articulação entre teoria e prática. Gerir um país, suscitou decisões, aplicações e resultados que só podem surgir ao ser protagonista da História. O processo de tomada de decisões constrói soluções e cria experiências que só podem ocorrer se forem feitas. Assim, apesar de erros e limitações, a URSS hipertrofiou áreas em detrimento de outras, chegando à fronteira de conhecimentos em muitas áreas, tendo fragilidades em outras. A tentativa de inexistência do mercado fez seu ressurgimento, seja como algo ilegal ou como resultado de sua inevitabilidade naquele contexto.
O processo de modernização da URSS permitiu uma redução da defasagem nas relações sociais de produção em relação aos países capitalistas mais desenvolvidos e que estavam assumindo situações de conflitos de interesse, concorrência e conflito, que levaram à ascensão do nazifascismo e à 2ª Guerra Mundial, tratada a seguir.
2ª Guerra Mundial. Posição defensiva inicial da URSS frente ao nazifascismo. Pacto de Não Agressão. “Traição” Nazista. Resistência e vitória;
Os conflitos entre países capitalistas se acentuaram após a crise mundial de 1929. As vitórias do nazifascismo acentuaram as disputas pela hegemonia no planeta. EUA, Grã Bretanha, Alemanha, Itália e Japão, entre outros, disputaram mercados e acentuaram relações imperialistas e capitalistas de produção, agora com a presença do autoritarismo e de conflitos regionais e étnicos. A Guerra Civil espanhola foi uma introdução dos conflitos e as invasões da Alemanha em outros países se sucederam. O aumento de tensão levou à construção de blocos e resultou num conflito militar em nível global: a 2ª Guerra Mundial.
A URSS observou e interveio em vários conflitos: China, Espanha, leste europeu, entre outros. O fascismo se disseminou como uma versão alternativa ao capitalismo democrático. A análise feita por Stalin considerava que muitos dos conflitos se davam entre países capitalistas e não fazia sentido uma tomada de posição entre os países em conflito. O discurso nazista enfatizava a posição anticomunista e o provável embate entre os países. A superioridade militar nazista era uma análise provável das forças armadas teutônicas.
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O aumento das ações militares alemãs levou à assinatura de um pacto de não agressão com a Alemanha em 1939. Isso permitiu algum tempo de análise e preparação do Exército Vermelho frente ao crescimento do conflito mundial. Naquela conjuntura, isso retardou a ofensiva nazista à URSS. Em 1941 isso ocorreu e houve a perda de milhões de soviéticos mortos pelo exército nazista e ofensivas militares que tiveram resistência acirrada pelo Exército Vermelho e pelo povo. A preparação da defesa e a subestimação da Alemanha Nazista ao inimigo levou a dificuldades inesperadas, como o retardamento da ofensiva e a entrada no inverno.
Vitória do Exército Vermelho em Stalingrado e derrota do Nazismo. Chegada a Berlim e estabelecimento da Cortina de Ferro;
Após resistência intensiva do Exército Vermelho, aonde os nazistas chegaram próximo a Moscou, houve o cerco na Batalha de Stalingrado, o corte da linha de fornecimento de armas, vestuário e alimentos, levando à morte de centenas de milhares de soldados e oficiais nazistas. As armas e equipamentos do Exército Vermelho mostraram inovações inesperadas pelo inimigo, como o uso soviético da blitzkrieg. A partir da vitória soviética sobre os nazistas na Rússia começou uma ofensiva rumo à Alemanha, passando pelos países do Leste Europeu. A entrada do Exército Vermelho em Berlim é retratada mundialmente a partir dessa imagem:
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A vitória soviética em Stalingrado e o Dia D, comandado pelos EUA, gerou uma aliança com os exércitos aliados (EUA, Grã Bretanha, entre outros), que estava no outro flanco (ocidental) e em decorrência houve a vitória sobre o nazifascismo na Europa. A aliança feita com o bloco ocidental levou a uma divisão da Europa entre os vencedores (EUA, URSS, Grã Bretanha e França), levando à divisão da Alemanha e à criação de um bloco no Leste Europeu, orientado pela URSS, a Cortina de Ferro.
O final da 2ª Guerra termina com derrotas do exército imperialista japonês, resistências brutais (Batalha de Okinawa, com dezenas de milhares de mortos dos EUA, Okinawa e Japão) e finalmente, com a destruição de Hiroshima e Nagasaki por bombas atômicas norte-americanas. A rendição incondicional do Japão foi feita e a transição orquestrada pelos EUA em poucos anos. O esforço imperialista nipônico se converteu em ações na economia e na produção. Japão, derrotado, virou aliado dos EUA para conter o avanço socialista no Oriente. A História demonstra que inimigos se tornam aliados em pouco espaço de tempo.
Foi o primeiro sinal à URSS e o início da Guerra Fria. Isso é tratado a seguir.
Guerra Fria. Corrida armamentista, nuclear e aeroespacial.
A Guerra Fria se inicia após o fim da 2ª Guerra Mundial e a divisão do espólio entre os vencedores. Territórios, países, dinheiro, técnicos, cientistas e o início de uma disputa de hegemonia entre os EUA e a URSS. A conferência de Yalta consolidou consensos entre os vencedores do conflito mundial e a divisão de espólios dos derrotados.
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Stalin conquistou os países da Cortina de Ferro (Polonia, Hungria, Albânia, entre outros) e dividiu a Alemanha entre o bloco capitalista e socialista. Conseguiu espólios nazistas, como os pesquisadores e técnicos em aeronáutica, astronáutica e utilização de tecnologia de alto nível. A AST envolve TC nazista e inovações no campo militar e civil. O desenvolvimento das forças produtivas levou a uma corrida aeroespacial, militar e armamentista, dado que a URSS passou a ter bombas nucleares a partir de 1949. As tecnologias civis e militares acentuaram uma corrida armamentista e aeroespacial, com inovações relevantes em nível mundial.
Houve no flanco oriental algo que era possível e ampliou a influência da URSS. A guerra civil entre o Kwomitang e os comunistas levou à vitória do bloco liderado por Mao Tse Tung. Isso levou à revolução chinesa, que mimetiza muitas das experiências soviéticas para o país do extremo Oriente. Stalin apoiou Mao Tse Tung e gerou estabilidade, dado que as defesas dos comunistas chineses puderam ser mais eficientes nos territórios chineses. Sem a Revolução Russa não haveria modelo nem sustentação para o desenvolvimento da China.
A partir da morte de Stalin começou um distanciamento da URSS e da China, com conflitos no período. As relações da China com o Ocidente cresceram e as disputas com os soviéticos se sucederam. No entanto, isso passa a ter retorno no século XXI, com Putin no poder na Rússia e o desenvolvimento econômico e social na China. O desenvolvimento tecnológico, econômico e social, além da economia planificada estatal tiveram consequências em ambos os países. A influência disso na consolidação do Estado de Bem Estar Social nas políticas econômicas e sociais é relevante. Isso é discutido a seguir.
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Welfare State: avanço da sociedade civil organizada, melhoria das condições de vida e de direitos humanos e dos trabalhadores.
Os erros cometidos pela Revolução Russa são decorrentes de falta de análise do modo de produção capitalista e de seu enfrentamento. Um golpe de Estado que produz um Capitalismo de Estado foi uma receita feita em todo o século XX: URSS, Iugoslávia, China, Coreia do Norte, Cuba, Angola, Moçambique, Vietnã, entre outros, reproduziram o Capitalismo de Estado. A adequação sócio-técnica[2] (AST, Dagnino, 2004) se deu no Capitalismo de Estado sobretudo nas indústrias de infraestrutura, metal-mecânica, ferroviária, aeronáutica, militar, entre outras. A produção em larga escala de produtos estandardizados foi consensualizada e reproduzida.
Por outro lado, isso gerou a necessidade dos países capitalistas a negociarem mais direitos aos trabalhadores, com conquistas de direitos humanos e nos países mais desenvolvidos o estado de bem-estar social, associando o fordismo ao keynesianismo. Mesmo sendo conquistas sociais e trabalhistas, pode ser considerado uma concessão para evitar mais países no bloco soviético e gera compensações pela exploração capitalista, com mais direitos e inclusão social. Isso foi consequência dos avanços sociais no bloco socialista e uma redução da influência nos países ocidentais. Essas ações reduziram a influência soviética ou chinesa sobre países capitalistas.
Nos países de maior desenvolvimento humano, muitos deles sob influência social democrata (Escandinávia, países baixos e até Alemanha Ocidental), os direitos sociais e trabalhistas criaram uma rede social e pública mais sofisticada e democrática. O que tem forte correlação com a Guerra Fria e a contenção ao avanço dos países “socialistas”, capitalistas de Estado. A experiência do Volvismo é algo que não foi feito na URSS e representa um processo de democratização industrial a ser estudado e apropriado para outras situações. Isso seria um passo que não foi feito no pós-stalinismo porque essa percepção não ocorreu lá.
Isso é uma consequência da influência da URSS na correlação de forças em nível mundial. O período da Guerra Fria gerou uma expansão do consentimento fordista-taylorista (Gramsci, 2004; Burawoy, 1979) e uma época de desenvolvimento social e econômico em ambos os blocos, apesar dos conflitos e a corrida armamentista e espacial no período.
As mudanças no modo de produção capitalista, principalmente a partir do último quartel do século XX, com o Toyotismo e as tecnologias de informação, não permitiram mudanças na organização da produção, na informática e bens de consumo. Isso gerou instabilidades que foram mal-conduzidas na URSS e deram sustos na China, que estava em revisão desde o final dos anos 1970 e puderam acompanhar melhor as transições, que não foram bem assimiladas sequer pelos EUA, como se observou na crise mundial de 2008. Logo, as relações técnicas na produção reproduziram novas relações sociais de produção.
A seguir, um acontecimento que pelo conhecimento e foi gerido por Stalin e que passou a ser relevante no século XXI: a revolução chinesa.
Apoio à vitória da Revolução Chinesa. Vitória de Mao Tse Tung e do Partido Comunista.
A Revolução Chinesa aconteceu através de Guerra Civil após a dominação japonesa e o fim da 2ª Guerra Mundial.
Os EUA já sabiam desse risco, mas provavelmente Stalin não tinha conhecimento pleno da situação ou não tinha governabilidade para abrir outro flanco de conflito no Oriente. Os norteamericanos já tinham tratado com prioridade a área, que corria o risco de se tornar parte do bloco liderado pela URSS. A tal ponto de ter tido forte ofensiva na Ásia e na ocupação do Japão, por exemplo, na batalha de Okinawa, com a morte de dezenas de milhares de pessoas do lado japonês e norte americano. A utilização de bombas nucleares em Nagasaki e Hiroshima foi uma sinalização para a URSS e para os movimentos de esquerda na Ásia e no mundo.
Contudo, em outubro de 1949, os comunistas chineses, liderados por Mao Tse Tung, conquistaram a vitória contra os nacionalistas e tomaram o poder em um país devastado pela guerra contra japoneses. O modelo soviético foi inspiração para eles e recebeu o apoio formal de Stalin. No mesmo ano, no final de agosto, a URSS fez testes com bomba nuclear, informando possuir o conhecimento no enriquecimento de urânio e de usar artefatos semelhantes aos EUA. Esses dois fatos devem ser creditados ao líder soviético, que teve a habilidade para instalar novas posições na Europa e no extremo Oriente. A Guerra Fria está consolidada.
O mesmo pode ser argumentado para a Coreia do Norte, que teve tentativa de anexação pelo Japão e passou para uma divisão semelhante àquela ocorrida na Alemanha. Após a Guerra da Coreia, a divisão se estabeleceu, tendo a Coreia do Sul recebido o status de aliada dos EUA e o país ao norte tendo ligações com a URSS. Mesmo sem a mesma importância da China, deve-se ressaltar que o cenário estratégico regional se deve a políticas e estratégias desenvolvidas por Stalin e que tiveram desdobramentos.
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CONCLUSÕES
O distanciamento histórico, cognitivo e territorial pode permitir uma avaliação mais racional e comedida. Eventos e acontecimentos mudam as percepções e avaliações com o passar do tempo. Personalidades, figuras históricas passam a ter outras opiniões conforme a história se desenvolve. O exemplo de uma figura controversa como Josef Stalin é algo que se destaca entre as dissonâncias cognitivas e análises históricas, sociais e econômicas.
As perseguições políticas, brigas, possibilidades de abuso do poder e erros cometidos por Stalin existem e foram divulgados pelo nazismo, direitas, sociais democracias e militância de esquerda. Muitos desses possíveis erros são imperdoáveis. Eles se encontram em farta bibliografia, com fontes múltiplas e vários erros, como a falta de estudo sobre o desenvolvimento das forças produtivas, a busca da superação para outro modo de produção e a falta de ações e estudos na questão ambiental. A questão dos direitos humanos é algo questionável. Os erros de Stalin estão colocados e são públicos, mas deixam de lado fatos e avanços dos atos e decisões da URSS.
A dissonância cognitiva envolvendo Stalin faz com que não se observe alguns aspectos positivos. O caminho percorrido pela URSS colaborou em vários aspectos que se tornaram marcas importantes para a questão da luta por uma igualdade social básica, direitos trabalhistas, direitos humanos, acesso à saúde, educação, entre outros. Ações do Estado na infraestrutura, logística, energia e em atividades industriais, além de ações que envolvam planejamento e sustentabilidade ambiental têm raiz nas experiências inspiradas em Marx, Engels e que ocorreram em um país subdesenvolvido e na qual o desenvolvimento das forças produtivas ocorreu sob novo prismas.
A Revolução Russa proporcionou uma revolução capitalista industrial na URSS, Leste Europeu, China, entre outros países. O “atalho” para uma revolução socialista não pulou etapas no desenvolvimento das forças produtivas e introduziu problemas na produção de bens de consumo e serviços. As transições entre os modos de produção provavelmente se assemelham à transição do feudalismo ao capitalismo, que durou séculos. Por outro lado, os avanços soviéticos na indústria militar, aeronáutica, aeroespacial e em indústria de construção civil de grande porte na URSS geraram ganhos cognitivos de base para a Rússia contemporânea.
Os espólios da URSS de Stalin foram herdados pela Rússia contemporânea e outras repúblicas. A corrida aeroespacial e a Guerra Fria criaram uma expertise nos temas. A indústria militar gerou as forças armadas russas, lideradas por Putin, um ex-agente da KGB, que lidera a Rússia no século XXI. A guerra entre a Ucrânia (2021-5, apoiada pela OTAN) e a Rússia demonstram que a curva de inovações teve continuidade. Mesmo na saída de corporações transnacionais da Rússia há resquícios culturais de outros tempos (ver em https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2023/12/18/como-putin-transformou-o-boicote-do-ocidente-em-um-negocio-lucrativo-para-a-elite-russa.ghtml).
Uma questão que abordada pelos Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia no final das últimas décadas do século XX é que a tecnologia, a ciência e a tecnociência não são neutras. Elas são construções sociais e históricas. Não são verdadeiras, únicas, universais, determinadas e inexoráveis. Elas são centrais para a extração de mais valia, subsunção, alienação e poupadoras de mão de obra. Ao contrário dos modos de produção anteriores (feudalismo e asiático, por exemplo), as inovações ocorriam esporadicamente e não havia sua ocorrência frequente. O desenvolvimento das forças produtivas é intrínseco e orgânico, o que gera a articulação entre teoria e prática.
Uma questão que se observa é que os estudos e o trabalho de Lenin sobre o taylorismo e o diagnóstico das condições socioeconômicas da Rússia czarista é que havia a necessidade de fazer introduções de TC e construir o modo de produção capitalista na URSS. O atraso tecnológico e científico exigia uma AST naquilo que existia e continuar dali para a frente, inovando e produzindo conhecimentos. E como se sabe muitos conhecimentos são desenvolvidos na produção, no trabalho e na prática. Logo, ter tido uma apropriação de países subdesenvolvidos como a URSS acabou sendo importante para desenvolver sociedades, gerar igualdade básica e ter a possibilidade de errar.
Exemplos de “sucesso” daquilo que alguns chamam de “Socialismo Real” foram desenvolvidos e se apresentam no contexto atual em fronteiras do conhecimento: cadeia produtiva aeroespacial da Rússia; rede de infraestrutura urbana e de mobilidade da China; Sistema Nacional de Saúde de Cuba; redes de produção de conhecimento tecnocientífico em países como Cuba, Vietnã, Russia, China, entre outros. Isso não existiria se a sociedade civil aguardasse o desenvolvimento “natural” das forças produtivas para “arregaçar as mangas” e atuar. A luta de classes atua ativamente nas inovações e para isso tem de se ter teoria e prática.[3] A reforma tecnológica começa a partir dos conhecimentos existentes.
Durante décadas o fim da URSS gerou uma propaganda ufanista do Capitalismo. A partir de 1989, essa ofensiva se deu no neoliberalismo e na globalização, ou seja, o avanço das empresas e do capital financeiro em nível global. Contudo isso gerou um nível de confiança que não observou o Capitalismo de Estado e os processos de inovação no extremo oriente. Japoneses, sul-coreanos, os tigres asiáticos e chineses avançaram com estratégias de inovação que se mesclam, mas que na China se complexificam. O país que hoje é conhecido pelo seu extenso parque industrial é associado ao discreto mas expressivo Capitalismo de Estado e da sociedade civil.
Contudo, a coalizão anticomunista se alia aos adversários do marxismo leninismo ou ao stalinismo e obscurece algo que está dado: os sucessos da era stalinista, mesmo discordando da aparente falta de democracia e de liberdade de expressão, se deu no Capitalismo de Estado, na reforma agrária que acabou com o feudalismo russo e nas vitórias sobre a Alemanha. O desenvolvimento social e cultural da Rússia, da URSS e de outras repúblicas derivadas disso permite observar a relevância do líder soviético na História. Digamos que isso gerou um “learning by doing”, um aprender fazendo, algo que é um processo pedagógico no desenvolvimento das forças produtivas.
Além disso, o Capitalismo de Estado tem uma situação antitética em relação ao neoliberalismo. Ele favorece o planejamento, tanto em planos plurianuais (PPA), quanto em planos quinquenais. Favorecem o poder de compra do Estado, o princípio da economicidade e as inovações em áreas que exigem planejamento e coordenação, como água, energia, sustentabilidade, segurança alimentar, entre outras. Ela coordena partes do mercado, da sociedade civil e favorece ações que seriam incontroláveis pelas “forças do mercado”. É uma vantagem comparativa inequívoca frente a países em que isso é pouco relevante.
As experiências do Capitalismo de Estado da URSS e na China geraram novos aprendizados, na qual a AST criou as condições para avanços tecnológicos, científicos e tecnocientíficos nas fronteiras do conhecimento no século XXI. É perceptível que a China sai da engenharia reversa simples, do kaizen e adentra áreas de conhecimento que transcendem áreas em que outros países não chegaram. O aprendizado com os erros de Stalin e Mao Tse Tung foram internalizados e geraram inovações. O que não se sabe é isso gerará a exploração de fronteiras de conhecimento pouco exploradas ou até atrofiadas pelo capitalismo[4], com reforma tecnocientífica ativa.
O apoio inicial à revolução chinesa semeou uma nova superpotência que surge dos acertos e erros de Stalin, Mao Tse Tung e de avanços implementados desde Deng Xiaoping, do final dos anos 1970 até a queda do Muro de Berlim (1989). As reformas feitas na China atuaram nas fragilidades do Capitalismo de Estado, com aquisição de TC nas áreas da produção de bens de consumo e de serviços, aproveitando o exército industrial de reserva de centenas de milhões de trabalhadores para o desenvolvimento das forças produtivas. Outras estratégias orientais de inovação se mesclaram à economia planificada nos planos quinquenais pelo PC Chinês.
Não se pode desconsiderar que as transições de modos de produção são distintas ou tenham uma lei universal. O capitalismo ocorreu de forma não interessada, mas atualmente está na articulação entre a acumulação de capital e o processo de inovação, como fonte para a queda tendencial da taxa de lucro e a ampliação da poupança de mão de obra. As mudanças exigem debates, controle social e novas orientações sociais e ambientais. A transição do capitalismo para outro modo de produção será de longo prazo e, claro, pode não acontecer. A concertação e o controle socioambiental exigem regulações culturais, econômicas e políticas.
Sem as experiências concretas da Revolução Russa e Chinesa não haveria uma multipolaridade. Lenin, Stalin, Kruschev, entre outros líderes soviéticos erraram muito, mas acertaram na infraestrutura, educação e igualdade social básica. Construíram o Capitalismo de Estado e políticas sociais, o que inspirou parte do Estado de Bem Estar Social, entre outros avanços sociais, econômicos e tecnológicos. A URSS venceu a 2ª Guerra Mundial e a Revolução Chinesa ocorreu no Oriente, entre outras. Sem reformas tecnocientíficas com objetivos como a igualdade social e a sustentabilidade ambiental não há mudanças no modo de produção.
Nesse sentido, os erros e acertos de Stalin geraram as condições necessárias para a multipolaridade, que era a essência dos países não alinhados visando a autonomia, a liberdade e o desenvolvimento social e econômico autônomo de potências econômicas e militares. O capitalismo de Estado é a base estrutural dos países do BRICS, dada a condição de capitalismo periférico no século XX no Sul Global. E isso não é um defeito, é uma característica essencial de desenvolvimento de novo tipo. Assim, fazer análises históricas, sociais e econômicas pode ser útil, até para superar as dissonâncias cognitivas nesse tema.
O bloco dos países não alinhados evoluiu para o Sul Global e no século XXI para os BRICS. Países como Brasil, Índia, China, África do Sul e Rússia lideram países que crescem mais que o G20 e criam condições para que haja novas polaridades em nível internacional. A transição para a multipolaridade ainda é uma possibilidade, diante de conflitos, embates e desdobramentos possíveis. Mas, nas condições normais de debate político, econômico e social é possível que ela ocorra. O conflito de interesses é notório, o que gera instabilidades e até conflitos militares. Há um acúmulo de lutas e conquistas nesses países que pode gerar AST de outro nível.
A aproximação entre Rússia e China gerou consequências geopolíticas, militares, energéticas e econômicas. Os países têm mais de 4000km de fronteira e o distensionamento entre os dois países continentais permitem o deslocamento estratégico militar para os dois países, ampliação da logística, infraestrutura e comércio bilateral. Isso gerou sinergias e priorizações no Oriente e no Ocidente, o que propiciou novas oportunidades e desafios. A reinvenção das Rotas da Seda, que existem há séculos e percorrem a Eurásia, aproximando-se de estratégias chinesas e russas já experimentadas no passado remoto.
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Tanto na Rússia quanto na China o fato de terem adotado um Capitalismo de Estado caracteriza o desenvolvimento das forças produtivas. Isso engendrou uma espécie de AST, dado que na ausência de burguesia, o Estado ocupou os tecidos produtivos e fez reformas para adequá-los. Por motivos análogos outros países não alinhados, como o Brasil, tiveram um redesenho tecnológico que construiu novas arquiteturas em seus países. Tecnologia, Ciência e tecnociência são construções sociais e históricas. Logo, Stalin, Mao e até Getúlio Vargas (que não era de esquerda) deram contornos e internalizaram o Capitalismo no estilo de seus países do "Sul Global".
Há uma lacuna de informações sobre o aproveitamento de experiências em Economia Social, Solidária, Cooperativismo e outras ações de sociedade civil nos países influenciados pelo Stalinismo e Maoísmo. Sabe-se que isso é secundário ou marginal, mas não há informações sobre sua ocorrência. No caso rural soviético há o registro de cooperativas, assim como havia no caso chinês. Contudo, na atualidade não se teve acesso a informações detalhadas sobre isso. Parece ocorrer no Oeste da China, mas não há detalhes. Essa é uma lacuna que poderia ser melhor estudada no processo geral. Mas isso é um assunto a ser abordado em outra oportunidade.
Assim, apesar de não considerar muito as elaborações teóricas marxistas leninistas ou stalinistas, tendo a concordar com grandes parcelas de políticas públicas, planejamentos, estudos e trabalhos feitos, pesquisas e trajetórias de inovação em construção civil, logística, mobilidade e em ciências e políticas sociais, que tiveram desdobramentos e continuidade numa trajetória importante para muitos países e quem sabe uma multipolaridade global. Apesar dos erros de Stalin, há coisas positivas a serem observadas nesse líder soviético. A disputa de hegemonia ocorre no cotidiano, desde a fazenda da cooperativa rural até as estações espaciais.
Referências:
BRESCIANI, Luís Paulo. Da Resistência à Contratação. Tecnologia, Trabalho e Ação Sindical no Brasil. Brasília, SESI-DN, 1994.
BRYAN, Newton. Educação. trabalho e tecnologia. Tese de doutorado defendida pela Faculdade de Educação- UNICAMP. Campinas, 1992.
BURA WOY, Michael. Toward a Marxist Themy of the Labor Process: Braverman and Beyond. Politics and Society, v. 8 (3/4), 1978.
____ Manufacturing Consent - Changes in the labor process under monopoly capitalism. University of Chicago, 1979:
CORIAT, Benjamin. Pensar pelo Avesso: o modelo japonês de trabalho e organização. Rio de Janeiro, UFRJ, 1994.
DAGNINO, Renato. Tecnologia Social. Fundação Banco do Brasil, 2004.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Vols. 1 a 4. Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1999 a 2001.
HARMON-Jones, E., & Mills, J. An introduction to cognitive dissonance theory and an overview of current perspectives on the theory. In E. Harmon-Jones (Ed.), Cognitive dissonance: Reexamining a pivotal theory in psychology (2nd ed., pp. 3–24). American Psychological Association, 2019. https://doi.org/10.1037/0000135-001
HIGA, Willian. A compreensão da Ciência e da Tecnologia pelo Movimento Sindical Brasileiro. Dissertação de mestrado defendida no Departamento de Política Científica e Tecnológica. Campinas, UNICAMP, 2000.
MARX, Karl. O Capital. Crítica da Economia Política. Vol. 1 e 2. São Paulo, Ed. Nova Cultural, 1985.
____ Miseria de la Filosofia. Moscou, Progreso, 1988b.
Taylor, Frederick W. Princípios da Administração Científica. São Paulo, Atlas, 1990.
[1] Há pouco tempo encontrei um artigo que utilizava essa categoria para outro caso, que está sendo vivido no Brasil há alguns anos, relativo ao debate entre posições antagônicas, na qual as divergências saem do ambiente racional e objetivo para ser afirmado por questões morais, afetivas, cognitivas e de crenças, a partir das realidades vividas e que interferem nas avaliações e tomadas de decisão. Ver mais em https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2024/11/duro-de-matar.shtml?pwgt=l7goku4gmyktr9hef7lzan6y4uz198i0udz8fkgwym936n7m&utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=compwagift
[2] A AST é uma modalidade elaborada por Dagnino (2004) para uma avaliação sobre a questão da TC e a possibilidade de ocorrer alternativas. A elaboração de tecnologias sociais (TS) por atores sociais pode ser pensada com alguma liberdade criativa para uma economia planificada que tem à disposição TC inventadas nos países desenvolvidos e para a qual não há alternativas. O uso simples, a aquisição, adaptações podem ser mais do que simples adaptação de tecnologias em países distintos, mas ter seu redesenho em outros países, com adequações substanciais nos artefatos tecnológicos e até sua substituição por produções de novas tecnologias, como de certa forma ocorreram na URSS ou China.
[3] Uma observação que pode ser feita é que além do Socialismo Real houve experiências importantes de contratação tecnológica pela sociedade civil no capitalismo. O movimento sindical de orientação social democrata na Alemanha, Escandinávia e até no Brasil fizeram negociações sobre tecnologia e inovação e chegaram a contratar em plantas industriais, melhorando a saúde, a qualidade de vida e até a produtividade, com negociações envolvendo postos de trabalho e organização da produção (Higa, 2000, Bresciani, ). Houve resultados importantes mesmo sem um capitalismo de Estado determinante.
[4] A URSS se situou na exploração das fronteiras do conhecimento na indústria militar, aeronáutica e aeroespacial. A produção de ferrovias, estradas e obras de construção civil de grande porte foi comparada à produção ocidental. Contudo, a exploração na fronteira do conhecimento visando a igualdade social, a proteção ao meio ambiente e aos direitos humanos pode não ter prioridade, dependendo da percepção de que a tecnociência é uma construção social e histórica.
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